Sobre o EP "Travessia"
O desafio de utilizar IA para criar músicas com alma e personalidade humana
Após 6 meses de trabalho, posso afirmar que esse EP, composto por 3 canções, foi um grande desafio criativo que me propus a realizar.
As letras são todas minhas. A melodia também nasceu de mim, cantada à capela, com os erros e hesitações que só o humano carrega. Gravei e enviei áudios com referências de intenção, ritmo, intensidade. Fiz upload de centenas de arquivos de referência (timbres, harmonias, arranjos — o ponto de partida sempre foi profundamente humano).
Gerei, refinei e descartei centenas de stems até encontrar a sonoridade que me tocava de verdade.
Meu objetivo nunca foi simplesmente usar IA como uma curiosidade ou atalho, mas como um instrumento — tão potente quanto um piano, tão impessoal quanto um algoritmo, e tão sujeito à emoção quanto quem o opera. Nesse processo, promovi um encontro entre ancestralidade e tecnologia, poesia e código, emoção e máquina. A espiritualidade que experienciei durante minha vida, em rituais ayahuasqueiros, em terreiros de umbanda e na vida como um todo, estão nesse EP. Das influências artísticas e musicais da MPB aos hinos, pontos e rezos; da estrutura rítmica dos toques ancestrais às milongas e décimas espinelas. Com essa bagagem no coração, é que criei esse EP, que se inicia em um conflito existencial, passa por uma oração de fé e se encerra na calmaria.
Busquei a consistência vocal e estilística e estou satisfeito com o resultado. Pode ser que ouvidos mais apurados ainda percebam traços de IA, mas estou certo de que a missão do projeto está cumprida: criar pontes entre o sagrado e o digital, entre a essência do humano e as ferramentas do presente.
E agora, com as músicas prontas, convido você a escutar e sentir.
Travessia
Criada a partir de uma poesia original, “Travessia” é uma canção que propõe uma escuta profunda e sensível de um momento de confusão e depressão.
A canção se constrói com versos que evocam silêncio, memória e contradições temporais. Logo no início, a ambiguidade do título se revela: “medita em paz ciente” pode também ser lido como “medita impaciente”, instaurando a tensão entre recolhimento e inquietação que permeia toda a obra.
Esse sentimento é intensificado pela escolha de uma assinatura de compasso não convencional, que foge dos padrões rítmicos usuais e reforça a instabilidade e a fluidez da melodia. Cada sílaba poética é cuidadosamente encaixada dentro de uma métrica inusitada, que exige escuta atenta e entrega emocional. É um movimento onde a estrutura rítmica e poética se torna extensão da própria linguagem poética.
Com imagens como “o futuro está suspenso / e o tempo reticente”, e “relembra futuros passados / no grito gritado calado”, a letra convida o ouvinte a mergulhar numa travessia simbólica entre passado e futuro, dúvida e fé, contemplação e movimento.
Mais do que uma música, “Travessia” é uma experiência sensorial. Uma ponte entre o mistério ancestral que habita o ser e a linguagem tecnológica que molda os nossos dias.
Mar de fé
Inspirada por uma poesia autoral, “Mar de Fé” é uma oração em forma de canção, que navega entre o sagrado e o sensível, em águas onde o pranto não é fraqueza, mas oferenda. Uma súplica em forma de canto.
Com letra de rara profundidade e imagens simbólicas poderosas, a música é uma reverência à força feminina das águas, à sabedoria dos marinheiros e à espiritualidade umbandista e ribeirinha.
Termos como “Odôiyá, Beira-Mar / Saravá, Marinheiro” não são meros refrões — são saudações vivas, orações ritmadas que convocam a ancestralidade.
A melodia, ao mesmo tempo serena e pulsante, guia o ouvinte por “marés internas”, evocando Iemanjá, os barcos, os ventos e as promessas feitas nas ondas. É um canto para quem já se perdeu, para quem rema contra o tempo, para quem carrega saudades de um cais que ainda não chegou.
Mais do que uma música, “Mar de Fé” é um ritual sonoro que propõe, em tempos de arte pós-humana, uma reconexão com o íntimo. A letra cria uma ponte entre a tecnologia e a tradição, entre algoritmos e encantarias, entre a imagem digital e a lágrima verdadeira.
Canoeiro
“Canoeiro” canção que encerra o EP, nasceu do silêncio interior, da escuta das águas e da escuta ancestral. Em contraste com a canção de abertura, essa é uma música de poesia e estrutura rítmica simples, que entoa a paz devolvida ao eu lírico.
Inspirada na figura de Zé Canoeiro — guia das linhas de marinheiros nas tradições espirituais brasileiras.
A música evoca a sabedoria de quem sabe que o movimento da canoa não é apressado, mas firme, constante e direcionado. Cada verso carrega a mansidão dos rios e o mistério de quem guia sem pressa, levando de volta ao cais o que se perdeu de si.
A letra é um chamado à inteireza, à escuta e ao retorno. Fala de um tempo que não se mede em horas, mas em ciclos, silêncio e acolhimento. É canção de cura, mas também de despedida do que já não serve.
“Água leva, água traz / de volta ao cais” não é apenas um refrão — é um ensinamento antigo em veste contemporânea. Uma lembrança de que, mesmo à deriva, sempre existe um rumo possível.